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O que é teu é meu, mas esta interface é minha

O que é teu é meu, mas esta interface é minha

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Quando peço à Siri que telefone à minha mãe, entramos numa conversa sem fim. Eu repito o som “ã”, ela não consegue localizar o contacto.

Sim, podia mudar o nome com que guardei o número da minha mãe, para um estrangeirismo. Mas isso foi algures na década de 2000, num telemóvel com tampa, e eu resisto à mudança.

Pelo mesmo motivo, recuso-me a alterar a língua das definições do telemóvel.

E assim, numa espiral de resistência e teimosia, peço, por amor de Deus, Siri, liga à minha mãe.

(Dica: resulta se lerem aquele til anasalado como “mi”.)

Certo dia, peço: Siri, call my mother.

No seu tom passivo-agressivo, a Siri responde-me:

I don’t know who your mother is. In fact, I don’t know who you are.

Se esta resposta podia ter espoletado uma crise existencial? Podia.

Mas fez-me pensar numa pergunta do John Saito: is this my interface or yours?

Anos a trocar dados e a Siri não me conhece nem sabe quem é a minha mãe. Muito triste.

O artigo é de 2016 e percorre as alterações que a Microsoft fez ao texto do ícone do computador. De My computer para Computer, quando estaria subentendido de quem era a máquina, e depois para This PC, para resolver a ambiguidade.

Quando usar “meu” e “seu”

Na sua mensagem passivo-agressiva, a Siri ainda sugere:

(…) I don’t know who you are. But you can tell me. In Siri Settings, tap on ‘My Info’ and choose yourself from your contacts.

Ou seja, devia dirigir-me à “Minha informação” para esclarecer a minha identidade.

São as informações que me pertencem. E, por isso, a Apple classificou-as claramente como minhas.

Os possessivos meu minha servem para momentos de interação do utilizador com o produto, diz o John Saito.

Por outras palavras (artigo do UX Movement), aquilo que é meu expressa essa relação de propriedade. Ou de controlo, como sugere a Microsoftnotificar-me quando um dispositivo Bluetooth tenta ligar-se ao meu computadorlembrar a minha palavra-passe.

Os possessivos seu e sua usam-se quando a interface veste o papel de um assistente e faz perguntas ou dá instruções ao utilizador. Quer cancelar o seu cartão de crédito?

Por outras palavras, quando o produto personaliza algo para o utilizador, são as suas recomendações.

Quem quer saber de possessivos?

Imagino as longas de horas de discussão para escolher o microcopy junto ao ícone do computador da Microsoft. Existe sempre um racional, mesmo que estas pequenas mudanças de uma palavra sejam invisíveis a olho nu.

Na verdade, uma só palavra pode interromper a experiência.

Estava a correr comentários recentes no Figma e a tentar perceber se já tinha passado por todos. Como essa tarefa nem sempre é fácil, tentei escolher apenas os comentários onde estava mencionada ou onde já tinha deixado alguma opinião.

Conheço a funcionalidade, sei onde encontrá-la. Mas lá estava ela, a já familiar dúvida de propriedade: Only your threads.

No Figma, podemos escolher ver apenas os comentários onde estamos mencionados na opção “Only your threads”.

Estas cadeias de comentários são minhas ou suas?

Sei que, por defeito de profissão, me foco mais nestes detalhes e que eles podem parecer insignificantes para outros utilizadores. Mas não são pormenores, nem detalhes nem picuinhices (existe, sim).

Os possessivos clarificam o conteúdo. Por isso, quando o utilizador navega na jornada, é capaz de tomar decisões mais seguras porque encontra um conteúdo inequívoco.

Para conseguir que a Siri me reconheça, devo ir a “Minha informação”.

Terá sido para evitar dúvidas que o Continente decidiu que, no seu menu privado, a entrada para os produtos (favoritos, frequentes, etc.) devia chamar-se “Os meus produtos”.

Nenhum outro ponto do menu leva o possessivo, porque não precisa. “Dados pessoais” é suficiente para me dizer que, ali, vou encontrar o meu nome, email e outras informações pessoais. Sei que todas as “Moradas” são minhas, sem precisar de ler o possessivo.

No menu da área privada, o Continente só usa o possessivo para distinguir entre os produtos com que já interagi de alguma forma e a pesquisa de produtos a comprar.

Na verdade, precisamos de espalhar os seus determinantes em toda a suainterface para garantir que a sua experiência é simples? Não.

Quando o conteúdo é absolutamente claro (os utilizadores usam o produto sem tropeçar ou hesitar), podemos não escrever nenhum possessivo. Seria, no mínimo, cansativo abrir o Gmail e escolher entre Os meus emails principais, Os meus emails sociais e Os meus emails promocionais.

Uma nota sobre consistência. Se arrepia olhar para um formulário e ter só alguns campos com possessivos? É capaz de fazer tremer uma vista, sim. Mas não precisamos de sacrificar a clareza pela consistência.

Pode ser importante sublinhar que estamos a pedir O seu n.º de contribuinte, porque o utilizador está a abrir uma conta para a sua empresa. Como a empresa tem um contribuinte próprio, eliminamos a dúvida à partida.

Parece óbvio? Vamos observar utilizadores.

Por vezes, o n.º de telemóvel pedido para fazer o registo no homebanking é o nosso, mas também pode ser o da tia. True story.

O utilizador, a interface e a inteligência artificial: mexican standoff

Nem podia acabar este artigo sem se falar de inteligência artificial.

Recentemente, a Microsoft atualizou o seu guia de estilo com uma nota sobre o uso de possessivos perante conteúdo gerado por inteligência artificial.

A recomendação é pela transparência: usar possessivos para deixar claro que algo aconteceu “nos bastidores”, ou escolher palavras que manifestem subjetividade numa ação tomada (tenho reservas, mas percebo a ideia).

Pelo exemplo, clarifica-se: Depending on your choice, some features may be turned off by default.

Não deixa de ser curiosa a preocupação por trás desta adenda e o que ela mostra: podem existir 3 perspetivas na experiência.

Já estamos muito longe daquela experiência digital individual, quando bastava dizer My computer.

O utilizador, a interface e a inteligência artificial: mexican standoff